4.2.14

Madrugada adentro

Abrir mão do passado requer desapego e coragem.
É bastante confortável manter um certo ponto de vista que nos coloque em uma posição passiva frente a atitudes questionáveis de pessoas que exerceram influência considerável em algumas decisões drásticas que tomamos.
As consequencias nem sempre são divididas plenamente, alguns detalhes ficam guardados sem previsão de compartilhamento. Quanto mais incômoda a situação, quanto menos digerido um evento, menos combustível nos falta para traduzir aquele emaranhado de sinapses em linguagem para transferir a um terceiro.
O tempo que separa os efeitos das causas é uma ilusão que nos confunde. Algo vivido na infãncia é refletido em ações cotidianas, causando deja vus que nos convidam a ressignificar, sublimar ou repetir comportamentos que afirmam aquela lembrança gravada em cada carcaça.
Pessoas não são substituiveis e resgates não são transferíveis. Cada qual com sua bagagem de débitos em aberto ou depósitos a receber.
No fundo no fundo, ninguém esta muito interessado com o seu bem estar enquanto as suas atitudes não ameacem o conforto de quem estiver ao seu redor.
Seja útil, infeliz ou não.
Desenhe algo vendável, verdadeiro ou falso.
Transborde simpatia, mesmo que simulada.
Agradeça ao universo, mesmo quando nada mais faça algum sentido.
Obedeça e não encha mais o saco.
Qualquer forma de devoção é sintoma de uma estrutura psiquica fragmentada.
Todos somos uma colcha de retalhos.
Cada um possui uma história. Poucos dedicam alguma energia para compartilha-la. O maior desafio é escrever o livro. Distribuí-lo é atividade paralela e não necessáriamente uma tarefa do autor. Quanto mais reverberável, mais independente é uma obra.
Pode demorar um, dois, dez, cinquenta anos. Pode trazer ao canal fama imediata ou somente após a sua passagem. Pode mudar a vida de cinquenta ou de milhares de outras pessoas. Após parir uma história, mesmo depois do batismo de uma obra, ela terá vida própria. Entrará no mercado, ganhará o reconhecimento de algum público somente quando a mão invisível do destino assim permitir.
Quem escreve o faz por uma falange de mudos.
Quem desenha, traz imagens ao mundo, presta um serviço por aqueles que não se arriscam em expor seus sentimentos.
Alguns rabiscos são populares, outros são rejeitados.
Alguns massageiam o ego do artista, outros o coloca no pau de arara.
Grandes histórias de amor são conturbadas, confusas, enigmáticas. Obras abertas que inspiram mas não explicam.
Falam de conteúdos universais, recorrentes, dolorosos. Quantos tiroteios foram vivenciados fora das grandes telas projetadas? Quantas lágrimas aos mártires de mentirinha que encontramos nas salas escuras dos cinemas? Quantos suspiros dados para aquela história de amor projetada com retoque frios como o ar condicionado de uma sala de projeção?
Os melhores atores não teriam exito sem o olho afiado de um bom diretor que comande uma equipe dedicada para cada detalhe da peça exibida. Não controlamos os eventos, mas temos um certo controle sobre a versão que guardamos dos fatos.
Fantasmas são poderosos quando ignorados. Tornam-se miudos quando encarados frente a frente. Quebram-se como delicadas peças de percelana quando confrontados, desobedecidos.
Fugir dos desafios propostos pelo destino não traz a centelha que iluminará um aspecto obscuro de nosso universo pessoal.
Coragem para deixar o seu eu vítima no passado.
Sangue frio para não adular outros organismos que nos inspirem veneração.
Sabedoria para interpretar as mensagens codificadas em cada sonho.
E tempo e espaço pra digerir e compartilhar cada experiência.

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